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Tudo escuro, com neblina, os raios continuavam a cair, iluminando o céu e obrigando-a a dirigir um pouco mais devagar.
Batia de leve as mãos no volante... Naquele horário não havia ninguém na estrada.
O asfalto permanecia molhado, era melhor prestar muita atenção no caminho.
Dirigia há alguns minutos quando percebeu a pista muito escorregadia e decidiu diminuir a velocidade, mesmo que levasse mais do que o tempo normal para chegar ao destino. Então resolveu parar para avisar Beth sobre onde estava e  as condições da pista.
Acendeu a luz interna do carro, abriu a bolsa e pegou o celular.  – Não é possível. A minha cota de azar está chegando no limite hoje. – xingou alto. Percebeu que a bateria havia terminado. Olhou para o relógio de pulso, eram 4:09 da manhã. 
Abaixou a cabeça e pegou o adaptador de celular no porta-luvas. Usaria o acendedor de cigarros do carro para carregar o aparelho. segurava o volante e o telefone ao mesmo tempo, nem percebeu que o carro se movimentava muito devagar. Esqueceu de puxar o freio de mão.
De repente, o carro deu um solavanco de maneira tão abrupta que ela quase bateu a cabeça no volante. Um grande susto.
— Mas que droga está acontecendo? - Um relâmpago brilhou no horizonte, clareando todo o ambiente. Voltou a chover. Ela se assustou, colocou a mão no rosto tentando cobrir o clarão e pensou ter visto um vulto ali na frente. Ouviu um barulho forte e o carro pareceu ter sido atingido por uma pedra ou algo do tipo. Ligou novamente o carro, tinha que sair dali. Deu o arranque e o contato falhou. Uma vez, duas. Liana ficou ainda mais nervosa, porém um forte zumbido tirou-lhe a concentração.
— Minha nossa! - gritou e arrancou com o carro. Outro baque. Alguma coisa estava errada, ela havia batido em alguma coisa, ou em alguém. Com as mãos geladas pelo nervosismo e tremendo muito, só conseguia balbuciar palavras - Bati em alguma coisa, meu Deus, bati em alguma coisa... Mas o que rais você está fazendo aqui.
A visão à frente era turva, embaçada. As luzes dos faróis caiam diretamente sobre a imagem que ela mais temia.
Assustada, decidiu descer do carro e ver o que havia acontecido. — Eu não queria machucar ninguém. – Eram as únicas palavras que conseguia dizer.
Um homem a sua frente, caído e machucado. Olhou com atenção, tinha um ferimento na perna esquerda que sangrava. O coração de Liana ficou descompassado, assustada.
— Meu Deus! Eu atropelei um homem. Olhou de um lado para o outro e aquele barulho no ouvido não parava. Instintivamente levou as duas mãos a correntinha com formato de meia-lua. Olhou de um lado para o outro e aquele barulho no ouvido não parava. Um zumbido. Abaixou-se ao lado do homem e olhou-o para entender o que tinha acontecido.
— Moço, me desculpe, essa chuva, eu não consegui vê-lo.
A calça jeans do homem tinha uma mancha escura que ficava cada vez maior e a sua camisa cinza escuro suja, mas, ainda bem era só do asfalto.
— Ajude-me, por favor! - ele murmurou, olhando fixamente para Liana. Ela percebeu que ele se encontrava em estado de choque. Tremia bastante, com dificuldades em respirar.
Continuava assustada. Ouviu vários relatos de assaltos na estrada na madrugada. Durante alguns segundos pensou que seria melhor sair dali o mais rápido possível. Respirou fundo e ponderou. Não era hora de pânico, saberia muito bem se defender, se precisasse. Além do mais, havia uma pessoa ferida bem à sua frente. Seria muito pior se abandonasse o local. Assumiria a responsabilidade se necessário. Não o deixaria na estrada sozinho.
Ele segurou o pulso esquerdo de Liana com força. Sentia muita dor. Não disse uma única palavra.
— Pode deixar. Vou ajudá-lo. Liana decidiu examiná-lo, sabia exatamente o que fazer. Fez um sinal com as mãos para que ele não se mexesse, além do corte na perna ele poderia estar com alguma lesão interna ou até com um osso quebrado, um mínimo movimento poderia prejudicar mais a situação. – Ficou muito preocupada, com o coração aos saltos. Ele segurou seu pulso com mais força ainda. Tremia. Olhava nos olhos de Liana com muita atenção. 
— Não vou deixá-lo. Sente alguma dor? Onde? Com as duas mãos segurou as dele. Não queria assustá-lo. Ao contrário, tentou tranquilizá-lo. -Eu vou ajudá-lo, está certo? Só não se mexa. - Ela insistiu.
Os olhos azuis do homem caído no chão a fixavam com atenção, ainda mais devido ao brilho da luz da lanterna do carro que os iluminava totalmente.
Ele fez um sinal negativo com a cabeça, respondeu. — Só a minha perna. Machuquei só a perna. Não consigo me mover.
Fazia muito frio. Ela o abraçou enquanto pensava no que fazer.
Seus olhos piscavam com força, o ambiente noturno era anormal, embaçado. Será que havia mais alguém por ali?
Permaneciam no meio de uma autoestrada, ao lado somente terra, árvores e mato.
— De onde você veio? - Ela olhou para os lados, aproveitando o farol do carro e percebeu que o pior havia acontecido.
Não tinha sido ela quem atropelara o rapaz: havia pelo menos uns dois carros na pista, a frente. Havia acontecido um acidente há poucos minutos. 
Ela se levantou, ele tentou impedi-la, segurou seu braço com mais força.
— Não me deixe sozinho!- Ele tinha a voz - Ele tinha a voz embargada, fraca.
Ele tremia muito. Liana tirou a jaqueta que usava e colocou em cima dele.
— Isso vai ajudá-lo a se aquecer. Não vou embora. Vou verificar o que houve.
Ele soltou a mão de Liana, bem devagar. Ele não tirava o olhar de cima dela. Uma lágrima correu sobre seu rosto, misturando com a chuva que recomeçou, apesar de mais fraca.
Liana foi até o carro procurar alguma coisa que pudesse usar para aquecê-lo e protegê-lo mais. Achou um cobertor jogado no banco de trás.
Voltou para o local, e com muito cuidado, dobrou o cobertor e colocou debaixo de sua cabeça, para que se sentisse confortável. Ele expressou um gemido de dor. 
Ela segurou a mão dele novamente. Tentou acalmá-lo. Soltou.
— Não se mexa, vou ver se tem mais alguém ferido logo ali.
Ele segurou as mãos dela com mais força dizendo.
— Não vá, é perigoso.
Liana percebeu que ele ficou assustado com a sua decisão. Teve medo que ela o deixasse sozinho.
— Eu tenho que saber o que houve. Preciso ver os outros feridos. 
Levantou-se, apoiando as mãos no chão.
E a intenção era verificar tudo rapidamente. Se tivesse mais feridos chamaria por ajuda. Não demoraria muito.
Foi em direção aos outros veículos o mais rápido que pode: a inspeção teria que ser eficaz. Com as pernas tremendo, preocupada, assustada sobre o que poderia ter ocorrido, aproximou-se de cada um deles. 
— Tem alguém aí? - gritava, olhando com atenção a sua volta, procurando movimento.
Aproximou-se de todos os veículos e percebeu que não havia ninguém, somente o homem no chão, bem à frente do seu carro.
Olhou com atenção em toda as direções, gritou mais vezes, ninguém respondeu.
Sua visão ficou embaçada, o contato da água gelada batendo no asfalto causava esse efeito enevoado, esquisito.
Com o coração disparado voltou para o seu carro, correndo. Tropeçou. Conseguiu apoiar as mãos no chão antes que batesse o rosto, a sua calça não teve a mesma sorte. Esfolou o joelho direito ao cair.
De volta ao carro, abaixou-se ao lado do homem misterioso e tentou mantê-lo mais tranquilo, abraçando-o.
Permanecia tão nervosa que nem percebeu que repetia as mesmas frases várias vezes.
— Você vai ficar bem, só foi um ferimento leve, - não vou te deixar. Ela apontou em direção ao carro, indicando o que iria fazer. — Só vou ligar para a emergência. Prometo. Está doendo em algum outro lugar? - Insistiu a moça, recuperando a calma.
Ele respondeu bem baixinho. – Não consigo mexer o meu pé.
Liana olhou para os pés do desconhecido, notou que o esquerdo estava em uma posição estranha. Por precaução não o tocaria e orientou o rapaz.
— Não se mexa. Estou pensando em alguma coisa para te ajudar, está certo?
A mancha de sangue não parava de aumentar. — Preciso dar um jeito de parar esse sangramento, está bem?
A todo momento achava necessário falar o que faria. Comunicar ao paciente o que estava fazendo, tentar ouvir uma resposta também era importante.
Teria que parar o sangramento.
Não se lembrou de nada que fosse útil que estivesse dentro do seu carro. Teria que improvisar. Nervosa, passou a mão pelos cabelos curtos e percebeu que usava o lenço branco florido.
Tirou o acessório da cabeça, torceu com as duas mãos e fez um torniquete.
Suas mãos tremiam, não sabia ao certo se era de frio ou nervoso.
O rapaz colocou uma das mãos sobre a mão de Liana e outra sobre o lenço, delicadamente. A princípio ela imaginou que era para impedí-la ou acalmá-la, depois ficou com dúvidas se aquilo iria dar certo.
— Esse é o meu lenço, não tem problema, vou usar como torniquete na sua perna machucada. Vai doer um pouco, será suficiente até eu conseguir chamar uma ambulância. É o melhor que eu posso fazer agora.
Levantou um pouco a perna, não iria prejudicá-lo. Ele gemeu de dor e voltou a segurar o pulso de Liana ainda com mais força.
A luz do farol atingiu o pingente de Liana e o fez brilhar, o desconhecido largou o pulso da jovem e ficou atento ao objeto iluminado, apertando os olhos para ve-lo melhor. Ela sentiu-se incomodada e ocultou o pingente, escondendo-o por dentro da gola do uniforme.
— Desculpe , preciso colocar isso para estancar o sangramento.
Gentilmente o soltou e levantou, voltou para o carro.
— Aguente firme. - Liana levantou-se devagar, tentando manter a perna dele o mais imobilizada possível.
— Você ficará bem, pedirei ajuda. Estou com o celular no carro, está bem? Pensou que talvez fosse interessante pegar o guarda-chuva.
Voltou para o carro, entrou. Passou a mão em todos os cantos, embaixo do banco, atrás e na frente. Procurou o celular caído ao lado do carregador, achou.
— Ainda bem que achei você.
Pegou a aparelho e começou a teclar o número de emergência. 
De novo aquela dor de cabeça forte, um zumbido no ouvido. Colocou a mão na têmpora. Tudo ficou preto e ela caiu adormecida ao volante.
Um trovão soou ali perto, Liana abriu os olhos,  encontrava-se dentro do carro, com as roupas secas, no acostamento da Howard Hill. Não havia nada à sua frente, somente a estrada.
Assustada, olhou adiante, esperando pela visão do grave acidente e do rapaz caído. E nada. A estrada encontrava-se totalmente limpa, vazia, somente ela e seu carro.
Desceu do veículo, com as pernas trêmulas, confusa. Ficou alguns minutos na frente do para-choque. Não havia sequer uma mancha, um amassado, absolutamente nada. O carro em perfeitas condições.
— O que está acontecendo aqui? - Olhou para os lados, confusa. Tudo se encontrava em ordem, do mesmo jeito que se acostumara a ver nas idas e vindas do trabalho.
Com as pernas trêmulas e as mãos geladas voltou para o carro e o ligou. Teria sido um sonho?
Olhou para o lado e viu suas coisas: a jaqueta, o guarda-chuva e o cobertor, tudo totalmente seco e no mesmo lugar de antes. As mãos tremiam, assustada. O que aconteceu? O rapaz sumiu. Desligou o carro. Não se conformava.
Saiu do carro, olhou em volta novamente, andou um pouco a frente. Nada. Aquela dor de cabeça a incomodava. Falaria com o doutor Diego sobre o acontecido. Poderia ser algum efeito colateral do remédio. Voltou para o carro.
Apertou o volante com muita força. Sentia medo, teria que sair dali. Teria que sair da Howard Hill, ficar parada na estrada era muito pior.
Bateu a porta do carro com força e arrancou, fazendo barulho com os pneus.
Em poucos minutos chegaria ao hospital onde teria o seu plantão normalmente.
Respirou fundo. Que sonho ruim, bizarro.
O resto da viagem aconteceu de maneira normal, a pista continuava molhada, havia uma pequena nevoa cobrindo tudo e as luzes faziam movimentos diferentes. Natural àquela hora da madrugada escura.
Não foram mais do que dez minutos de estrada, o hospital se encontrava bem à frente. Até que enfim chegou. Todas as luzes acesas, duas ambulâncias na frente e os movimentos de pacientes na entrada. Uma madrugada normal como tantas outras.
Deu a volta com o carro pela entrada nos fundos, e estacionou na garagem especial para funcionários.
Desligou o motor e dessa vez fez questão de puxar com força o freio de mão.
Andou pela garagem escura em direção à porta de acesso. Pegou o corredor em direção a sala onde deixaria suas coisas dentro do armário com cadeado.
Mal conseguiu entrar na sala e sua amiga Beth veio correndo em sua direção.
— Liana minha amiga, onde você esteve, são 5:27 da manhã, o que houve?
— Como assim Beth, nem são 4:20 da manhã. Mostrou o relógio de pulso. —Olhe.
— Você está doida, olha só o relógio na parede! – Beth apontou para um dos cantos da sala. – Vamos logo, está atrasada para o plantão. Estão faltando dois funcionários.
— Beth, espere um pouco, acho que o remédio não me fez bem, estou com muita dor de cabeça, acho que estou tendo alucinações, eu até dormi no volante há pouco. Por isso perdi a hora, eu acho.
Liana não entendeu nada. Não poderia ter perdido tanto tempo. Só parou um instante, será que cochilou e teve aquele sonho incomum? Olhou o relógio de pulso, eram 4:26 da manhã. Aquela situação tornou-se confusa demais para um dia de trabalho que pelo jeito não iniciou-se bem.
— Vamos! - Beth empurrou Liana para dentro do hospital. 
Liana mal conseguiu jogar a mochila dentro do armário e trancar à chave. Pegaram um outro corredor que dava acesso à área principal do hospital.
Beth foi com Liana até a sala do amigo Mike, o enfermeiro. Sorte não ter nenhum paciente naquele momento. Bateu à porta e disse. — Tem um minutinho? A sua paciente precisa de um conselho rápido! - Explicou preocupada.
— Pode sentar aí na maca! O que houve, fofa? - Mike era a calma em pessoa. 
Nem imaginavam como ele conseguia trabalhar em um hospital e continuar tranquilamente daquele jeito.
— Mike, a dor não passou. Senti uma dor forte, parei na estrada e acho que cochilei. Tomei o remédio como você me disse, no horário certo, não melhorei.
— Querida, está há quanto tempo sem dormir? – Vou preparar um soro para você. Só mais meia horinha. Deite aqui.
A maca ficava bem no canto da sala do consultório. Liana deitou, ajeitou a cabeça no travesseiro e ficou olhando o teto branco. 
A memória daqueles olhos azuis, de todo o acidente não saia de seus pensamentos. Era quase hipnótico. 
Em poucos minutos seu amigo voltava com o soro e com medicamento, ficou ao seu lado.
— Levante a manga da jaqueta do braço esquerdo minha linda. - Sorriu.
Liana se ajeitou e retirou o casaquinho.
Mike passou algodão com álcool em seu braço e aplicou o soro, devagar.
— Há quanto tempo está seguindo esse novo tratamento com o doutor Diego?
— Ele me disse que é comum esse método levar bastante tempo. Pelo menos as dores nos ombros passaram. Acho que uns seis meses. Desde que vim morar aqui creio.
— Daqui a pouco você vai cair no sono, Liana. Antes disso me responda: onde conseguiu essa marca roxa no pulso aí, amiga, e essa sua calça suja? Menina, você esteve com pressa? Levou um tombo e tanto aqui!
Liana não teve tempo de entender o que ele disse, e muito menos responder, levantou o braço, sentindo uma leve dor no pulso esquerdo e viu: a marca roxa exatamente onde o homem de olhos azuis havia segurado com força. Não teve tempo de pensar em mais nada. Dormiu.

 


 

 

O hospital local mantinha uma ótima estrutura e, como cidade pequena, o movimento não era dos maiores na madrugada. Haviam vários consultórios e as salas de atendimento simples ficavam à vista, com paredes com meio vidro, caso alguém quisesse acompanhar do hall o atendimento que não fosse de urgência, haviam também as de atendimento padrão e mais oito leitos de atendimento rápido e mais seis para emergência, além dos CTIs e UTIs com capacidade para mais vinte pacientes, que nunca ficaram totalmente ocupados.
Deitada em uma das salas de atendimento rápido, Liana descansava. Havia uma mesa para o médico, uma maca e, ao lado, um armário com todos os instrumentos e remédios necessários. Deitada, tranquila, tomando o soro com a porta fechada. Ninguém incomodaria. 
A dor de cabeça havia passado e ela aproveitou a oportunidade para descansar um pouco, eram mais de 18 horas acordada, merecia um pouco de descanso, mesmo durante o plantão. 
Através do vidro percebeu sua amiga Beth se aproximar, a ruiva abriu a porta e entrou na sala, sentou-se ao seu lado na maca, com os olhos brilhando, perguntou.
— Consegui dar uma escapada do meu atendimento. Você demorou muito para chegar, aconteceu alguma coisa? Vi o seu recado.
— Eu não sei ao certo, foi muito inusitado. Dirigia com  dor de cabeça. De repente eu sonhei que atropelei alguém, era um homem usando jeans, muito nítido na minha frente. Tudo foi muito real. Depois ele sumiu.
Beth ficou imóvel, por alguns instantes. Colocou as mãos ao lado do corpo, apoiada na maca, fez um leve movimento empurrando a amiga mais para o canto da cama. Respirou fundo. — Só isso? E o que mais?
— Basicamente só isso. Liana nem sabia como contar em detalhes o que tinha acontecido, afinal só foi um sonho. 
— Foi um sonho e tanto. - Beth exibiu um leve sorriso. — Você só dormiu ao volante por muito tempo, demorou a chegar. - Para Beth não tinha acontecido nada grave. 
Liana olhou para o relógio. Ainda não tinha entendido completamente o insidente. Tentava explicar algo que a princípio parecia confuso.
— Não sei o que aconteceu, o meu relógio parou... Alguém bateu no meu carro, ou eu bati em alguém, não sei ao certo, desci do carro até... Foi muito vivido.
Beth fez uma careta sem graça como se achasse que aquilo fosse mais uma brincadeira de Liana.
— Só isso? Sério?! Como alguém sonha assim desse jeito. Sonambulismo será? - Começou a levar tudo na brincadeira.
— Beth, não brinque, foi tudo real. - Liana tentava processar o acontecido. — Olha só a minha calça! Apontou para a roupa que vestia. — Ela está suja.
— Liana, você pode simplesmente ter sonhado com isso por causa de cansaço, algum estresse, o seu cérebro imaginou todo o resto. 
— Beth não me venha com as suas teorias. Eu fiquei muito assustada, de verdade. - Com um movimento involuntário Liana levou a mão aos cabelos curtos, foi nesse momento que percebeu a ausência do lenço. Levou um susto. Onde esqueceu o seu lenço branco florido que usava quando saiu de casa? Não se lembrava de estar com ele quando chegou ao hospital.
— Beth, você percebeu se eu usava o meu lenço, aquele branco com flores que você me disse uma vez que achou lindo? Eu tinha algo na cabeça, tenho certeza.
Liana olhou em todos os lados, levantou-se atenta, mexendo nos lençois da maca, levantou-se, olhou atrás dos móveis, imaginando que o lenço poderia ter caído em algum lugar atrás dela ou até mesmo no chão. Não havia nada.
— Você não usava nada, tenho certeza? Beth respondeu com segurança.
— O lenço não está comigo. Estava na minha cabeça e não me lembro de ter visto dentro do carro, você poderia, por favor, procurá-lo? Deve estar no banco de trás. Só pode. O meu irmão vai me matar se eu sair daqui.
— Qual a importância do lenço, Liana? Beth cruzou os braços na frente do corpo e apoiou-se na parede próxima a porta.
— Eu usava o lenço quando saí de casa, e eu tirei o lenço durante o sonho, se era um sonho ele deveria estar na minha cabeça, sumiu.
Beth balançou a cabeça, fez uma expressão de surpresa, entendeu a preocupação da amiga.
— Poxa vida. Que maluquice. Deu um pequeno salto. Espere aí um pouco que eu te ajudo. – Fique aqui. Vou dar uma passadinha rápida. Não saia daí, descanse mais um pouco. Se cuide. Você levou um tombo e tanto, só pode ter sido. Ah, e antes que eu me esqueça, vou avisar a todos que você dormiu por causa do remédio, foram três horas, ajuda bastante para descansar e recarregar as baterias. Melhorou a dor de cabeça?
Liana fez um movimento positivo.
— E como era o rapaz dos seus sonhos, bonito? - Beth fez um sorriso maroto, apoiando no batente da porta antes de sair, curiosa sobre o sonho de Liana.
— Não brinque, Beth, eu me lembro de cada detalhe. Ele usava jeans e camisa cinza, tinha uns olhos azuis incríveis, uma cor diferente e um cabelo castanho levemente ondulado, alto.
— Vou deixar você com o bonitão dos seus sonhos, ok? E vou dar uma olhada no seu carro... onde estão as chaves?
— Estão aí na minha mochila, Beth, dê uma olhada, veja se o meu lenço está aí dentro, por favor.
A enfermeira se aproximou e revirou com jeito a mochila da amiga. Nada de lenço.
Ela deu uma olhada em todos os bolsos e até jogou as coisas de Liana em cima da mesa, para não deixar escapar nada, nada de lenço florido. Colocou tudo de volta, menos as chaves.
— Bem, eu vou tirar o seu soro. Daqui a pouco eu volto. Descanse mais um pouco, - vai precisar. Saiu do ambulatório sorridente.
Beth saiu rebolando e fazendo caras engraçadas para a amiga, fechando a porta sem bater. 
Liana mal conseguiu responder com uma brincadeira. Fechou os olhos, pensativa e ainda um pouco sonolenta. Iria descobrir o que tinha acontecido de qualquer jeito.
Lembrou-se do acidente. Tudo parecia tão real, real até demais. Lembrou-se do rapaz caído no chão, deitado em seu colo, ofegante.
Num instante, um calafrio correu a sua espinha, sentiu como se já tivesse visto aquele rosto antes, em algum lugar.
Tentou lembrar os detalhes do sonho. O engraçado é que quanto mais tentava lembrar, mais enevoada se tornava a recordação.
Os olhos foram fechando devagar, em um leve cochilo. Dormiu novamente.
Sentiu um leve toque no seu rosto. Suave, quente, agradável, como se alguém tivesse se aproximado, devagar, falando bem baixinho nos seus ouvidos. Não conseguia entender. Só que tocavam seu rosto.
Via uma luz imensa ao seu redor, parecia estar em uma praia deserta. Conseguiu sentir a areia no chão, e novamente o toque sutil, só que agora envolvendo a sua cintura. Sentia-se imensamente segura.
Aquela sensação de Déja-Vu, não conseguia levantar a cabeça. De repente todo aquele ambiente maravilhoso tornou-se uma grande escuridão, sentiu que caia. Ouviu a voz de seu irmão ao longe. Com um grito, acordou assustada.
Olhou para os lados, era possível ouvir o movimento anormal na recepção. Talvez tenha sido aquilo que a acordou daquela maneira. Do seu sono leve.
A ambulância chegava fazendo um enorme barulho, perseguida por carros da imprensa. Um som de emergência tocou na sala principal. Uma voz aguda convocando-os para o atendimento incomum.
“Todos os funcionários apresentem-se, emergência na entrada.”
Liana, ainda zonza, olhou para fora. Tentava descobrir o que acontecia. Uma maca com um paciente envolto em cobertores térmicos e imobilizado foi retirada da ambulância, um dos atendentes gritou para um grupo de paramédicos que se aproximava:
— Houve um acidente e estamos malucos atrás do pessoal! Foram dois carros... agora há pouco, na estrada. Estamos trazendo um dos feridos para cá.
Mike entrou abruptamente na sala. — Oi linda! Que bom que acordou! Acho que vou precisar da sua ajuda com os curiosos e a imprensa. Só use o seu crachá, não temos tempo para formalidades com uniformes. Daqui a pouco meio mundo aparecerá aqui em cima de nós.
Sentiu uma pontada no pulso esquerdo e lembrou-se das mãos do rapaz do sonho a segurá-la. Seria mais um sonho dentro de um sonho? Piscou duas vezes. Falaria sobre esse devaneios com o doutor Diego com urgência, depois de descobrir o que estava acontecendo.
Saiu da sala em direção à ambulância que aguardava próximo à entrada da emergência, carregando um paciente. Pretendia conter os curiosos que se amontoavam na entrada e tentavam se aproximar da maca. Alguma coisa grave tinha acontecido.
Por ser da segurança, pode se posicionar em um lugar privilegiado, acompanhando todo o percurso da maca.
O acidentado, usava uma máscara com oxigênio, o braço preso com uma tala da ambulância e tinha torniquete improvisado na perna esquerda.
Vestia uma camiseta cinza grafite e jeans e trazia os cabelos castanhos e emaranhados. Era o mesmo homem que Liana tinha visto em seu sonho. 
Ela deu um passo para trás, arregalou os olhos, o que aconteceu ali?
Ficou confusa, será que tinha visto direito? Pessoas começaram a passar de um lado para outro. Começou a gritar o mais alto que pode.
— Deem passagem, segurança do hospital, deem passagem.
As pessoas não davam muita atenção a ela sem o uniforme. Tudo ficou mais complicado.
Os pacientes também queriam chegar mais perto para ver o que tinha acontecendo.
— Vamos deixando espaço para a maca passar, vamos, deem espaço. - Liana gritou novamente, agora usando o próprio corpo contra as pessoas que tentavam se aproximar.
Mais alguns colegas apareceram, e conseguiram afastar o restante dos curiosos. 
Um dos membros da equipe, bem próximo da sala de atendimento, começou a reclamar das condições do resgate:
— Essa chuva não ajudou em nada nesse trânsito maluco.
Liana teve que se esforçar bastante para que várias pessoas não se aproximassem tanto da maca.
— Deixem a ambulância passar. – gritava mais uma vez.
Pessoas curiosas aguardavam no saguão, os jornalistas apontavam as suas câmeras em direção à pequena sala. Começaram a fazer uma transmissão ao vivo.
Os curiosos acharam que era mais importante aparecer na TV do que acompanhar a maca, saíram de perto e se aproximaram dos jornalistas. Liana deu graças pela liberdade.
Os poucos pacientes que aguardavam no hall de espera olhavam o programa jornalístico da TV local, esperançosos pela oportunidade de terem sido capturados pela câmera. 
“Nessa manhã de sábado um grave acidente ocorreu na estrada que liga a capital ao litoral e envolveu dois carros que saíram da pista. Um homem foi resgatado com ferimentos graves. Ele tem aproximadamente 38 anos e não possui qualquer identificação ou documento, no local e não houve mais vítimas. O motorista que causou o acidente fugiu sem prestar socorro.”
Para evitar a bagunça dos curiosos e para liberar a passagem, Liana e parte da equipe se posicionaram para formar um corredor para aos paramédicos.
Liana tinha certeza, o homem era o mesmo que vira em seu sonho há poucas horas e até vestia as mesmas roupas do seu sonho.
Por um momento seus pés se recusaram a sair do lugar, ficou parada, até que um dos paramédicos pediu por ajuda e ela saiu do torpor.
Aproveitou o direito que tinha como segurança e chegou bem perto do paciente, tentando não despertar muita atenção dos outros.
Teria que verificar se aquilo era verdade.
Desacordado, com o rosto cheio de escoriações, o braço imobilizado, além de um corte próximo a costela e um outro machucado na perna esquerda. Um lenço branco com flores continha a hemorragia.
Liana levou um susto. Olhou com mais atenção, não era possível que aquilo estivesse acontecendo! Como o seu lenço prendia a perna dele sendo que tudo não passou de um sonho?
Pensou em pegar o lenço, mas tinha muita gente em volta. Impossível. Conteve-se.
O irmão de Liana, Tye, chegava em seguida, assustado. – O que houve? - Parecia muito nervoso com toda aquela movimentação.
Liana se posicionou na frente da maca de maneira estratégica para evitar que Tye visse seu lenço amarrado naquele desconhecido.
— Aconteceu um acidente na estrada, tenho que acompanhar essa maca até a sala de emergência para evitar que as pessoas se aglomerem aqui em cima, ele está gravemente ferido. Vê! Estou trabalhando! - Pediu para que se afastasse.
Tye olhou para os lados, inconformado.
Liana se movimentava de um lado para outro tentando impedir que Tye visse seu lenço. Como iria explicar aquela situação ao irmão?
— Depois eu preciso falar com você. Eu te espero. Tye pareceu menos preocupado depois que Liana explicou o acontecido. Ela não. Tinha o problema do lenço. Olhou seriamente para ele, tentando não parecer tão ríspida.
— Não me espere. Vou demorar.
Liana colocou a mão na correntinha, nervosa. 
Era necessário tirar o lenço do torniquete, sem chamar atenção. Um segurança não tinha autorização de tocar nos pacientes e havia muitas pessoas em volta, foi aí que teve a ideia.
Assim que os médicos conseguiram levar o carrinho com a maca até a sala de emergência, saiu correndo até o local onde Beth atendia um outro paciente menos urgente. Fez um sinal com a mão pela janela de vidro e a amiga acenou, informando que não demoraria.
Como segurança, Liana sabia que não poderia entrar na sala de emergência, mas uma pessoa poderia: Beth.
Ficou parada do outro lado do corredor, encostada na parede. Atenta.
Assim que o paciente saiu, Liana entrou e falou baixinho com a amiga.
— Beth preciso da sua ajuda. – Falou ofegante.
Beth parecia surpresa.
— Novidades? Pode falar. - Jogou o par de luvas descartáveis no lixo e cruzou os braços.
— Achei o meu lenço. Está amarrado na perna do rapaz que chegou agora na ambulância. E a roupa dele é exatamente do mesmo jeito que eu sonhei! Preciso que você consiga pegar o lenço que está amarrando na pena dele. É o meu lenço!
— Como é que é? – Beth ficou assustada. Olhou Liana com atenção.
— Preciso que faça esse favor. Se o Tye ver esse lenço nem vou saber o que explicar, ou melhor ainda, nem eu sei o que houve. Como vou explicar que o meu lenço foi parar no paciente daquele maldito acidente. Meu irmão tem uma memória incrível e esse lenço é sugestivo, para Tye não tem jeito, ele vai lembrar.
— Como é que o seu lenço foi parar na perna dele, se isso foi um sonho?

— Não tenho ideia! Ajude-me, por favor!

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